domingo, 15 de março de 2020

Por que o tema "200 anos da chegada de Saint Hilaire no RS" merece atenção especial - Parte XII

     E hoje, encerramos a série que fizemos sobre os 200 anos da chegada de Auguste de Saint Hailaire ao RS. Esperamos ter contribuído para a difusão de conhecimentos para nossos amigos internautas.

PRIMÍCIAS DAS TRADIÇÕES GAÚCHAS

          No capítulo anterior, vimos Saint Hilaire afirmando que o Rio Grande do Sul e Minas Gerais — apesar da identidade de língua e origem — eram mais diferentes do que a França da Inglaterra. Que características regionais seriam essas, a ponto do genial francês ter sido levado a uma afirmativa dessa natureza?

Mais alguns tópicos, pinçados aqui e ali e reagrupados com linearidade: 


     "Chamou-me a atenção, desde minha entrada nesta Capitania, o ar de liberdade de todos que tenho encontrado e a destreza de seus gestos, livres da languidez que caracteriza os habitantes do interior. Seus movimentos têm mais vivacidade e há menos afabilidade em suas maneiras. Em uma palavra: são mais homens".

     "Nas proximidades de Viamão, fiz um longo passeio para colher ervas. Achando-me um pouco confuso quanto aos caminhos a seguir, dirigi-me a uma casa que avistei ao longe. A dona da casa deu-me um negro para indicar-me o caminho. Ao ficarmos sós ele se apressou em demonstrar admiração por ver-me a pé. É que nesta região toda gente, mesmo pobre, inclusive os escravos, não dá um passo sem ser a cavalo".

      "Em todo o Brasil os melhores leitos compõem-se de um simples colchão de palha de milho, mas na primeira estância à que cheguei na Campanha nem isso existia e cada qual dormia sobre o arreiame de seu cavalo. A carona serve de colchão e o lombilho de travesseiro. Sobre a carona põe-se o pelego e deita-se envolto no poncho".

     "A pecuária pouco trabalho dá. O gado é deixado à lei da natureza, em completa liberdade. O único cuidado que reconhecem necessário é acostumar os animais a ver homens c a entender seus gritos, a fim de que não fiquem completamente selvagens, deixem-se marcar quando preciso, e possam ser laçados os que se destinarem à castração ou ao corte. Para tal fim o gado é reunido, de tempos em tempos, em determinado local, onde fica durante alguns dias, depois voltando para as pastagens, em liberdade. A essa prática chamam parar rodeio e ao local onde juntam os animais dão o nome de rodeio. 

      "Ao entrar nesta Capitania verifiquei logo os hábitos carnívoros de seus habitantes. Em todas as estâncias veem-se muitos ossos de bois, espalhados por todos os cantos, e ao entrar nas casas das fazendas sente-se logo o cheiro de carne e de gordura".

Saint Hilaire e o Churrasco Gaúcho:
     "Meu soldado cortou a carne em pedaços da espessura de um dedo, fez ponta em uma vara de cerca de 2 pés de comprimento e enfiou-a à guisa de espeto em um dos pedaços, atravessando-o por outros pedaços de pau, transversalmente, para estender bem. Enfiou o espeto obliquamente no solo, expondo ao fogo um dos lados da carne, e, quando o julgou suficientemente assado, expôs o outro lado".

Saint Hilaire e o Chimarrão:
     "A chaleira de água quente está sempre ao fogo e logo que um estranho entre na casa se lhe oferece o mate. O uso dessa bebida é geral aqui. Toma-se ao levantar da cama e depois várias vezes ao dia. A cuia tem a capacidade de mais ou menos um copo, é cheia com a erva até a metade, completando-se o resto com água quente. Conhece-se que a erva perdeu sua força e que é necessário trocá-la quando, ao derramar sobre ela a água quente, não se forma espuma à superfície. A primeira vez que provei essa bebida, achei-a muito sem graça. Mas logo me acostumei a ela e atualmente tomo vários mates, de enfiada. Acho no mate um ligeiro perfume, misto de amargor, que não é desagradável. Há muitos méritos nessa bebida, dita diurética, própria para combater dores de cabeça e para amenizar os cansaços do viajante, e na realidade é provável que seu amargor torne-a estomáquica e por conseguinte necessária em uma região onde se come enorme quantidade de carne, sem os cuidados da perfeita mastigação".

      "Há homens muito ricos, inúmeros são os estancieiros que dispõem de renda de até 40 mil cruzados. Todavia, em suas casas, nada existe que anuncie tal fortuna. Um campônio francês, com mil escudos de renda, vive com mais conforto. É no tocante ao equipamento de seus cavalos que o povo desta região procura demonstrar maior luxo. Os estribos fazem-nos de prata. As rédeas, testeiras e rabichos de seus cavalos são guarnecidos de chapas desse metal. Entretanto asseguram-me que os proprietários não ajuntam dinheiro, jogam hoje muito menos que outrora, e eu pergunto a todo mundo em que empregam o dinheiro. Mas é preciso dizer também que a generosidade de muitos deles absorve somas consideráveis. Suas bolsas estão sempre abertas aos parentes e amigos e eles dão ou emprestam com extrema facilidade".

       "Tenho já observado, muitas vezes, que os mineiros não são arraigados à terra natal. Nenhum hábito particular os retém, e eles não têm pesar em sair de Minas Gerais à procura de melhores situações, pois que sua inteligência lhes garante meios fáceis de subsistência em qualquer parte. Os habitantes desta Capitania, ao contrário, nunca emigram, porque sabem que fora dela serão obrigados a renunciar ao hábito de estar sempre a cavalo e em parte alguma encontrarão tamanha abundância de carne".

     "A vida pastoril, tomando o vocábulo em sua verdadeira acepção, é própria dos primeiros estágios da civilização, quando as regiões estão ainda despovoadas. Quando a população aumenta e as terras se dividem, é preciso dedicar-se à agricultura, que exige maiores conhecimentos que a criação de animais e portanto conduz o homem ao aperfeiçoamento. Em geral o emigrante do reino, tendo aprendido um ofício ou tendo sido criado em meio puramente agrícola, conserva sempre um certo desprezo pelos costumes grosseiros desses homens que lidam com o gado e levam uma vida pouco diferente da dos selvagens. Todavia não acontece o mesmo aos filhos de europeus. As primeiras coisas que se oferecem às suas vistas são cavalos e gado, aprendem a montar tão bem quanto os que os cercam e, não vendo elogios senão para isso, entendem não existir outras habilidades".

     "Aliás, a infância sempre achará inexpressável prazer no sentimento da sua superioridade. Esse prazer é experimentado quando a criança torna-se dona de um cavalo, quando ajuda a parar o rodeio, a matar um boi e retalhá-lo“.

     "Um pai europeu não deixa, na verdade, de falar à sua família a respeito de sua pátria, exaltando-lhe as vantagens e demonstrando desdém pela América. Mas seus filhos, não sendo europeus e sim americanos, irritam-se com o desdouro dos pais, por sentirem-se humilhados."

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