terça-feira, 16 de junho de 2020

Um novo cenário para os espetáculos regionais - por Liliane Pappen

Enquanto a pandemia de Coronavírus fez o mundo desacelerar, músicos e artistas gaúchos como Elton Saldanha, César Oliveira e Rogério Melo, João Luiz Corrêa, grupo Alma Gaudéria e o humorista Jair Kobe — o Guri de Uruguaiana, entre outros, precisaram se adaptar às tecnologias e transformar a internet em sua principal ferramenta de trabalho

          A pandemia de Covid-19 apresentou ao segmento artístico um cenário, até então, nunca imaginado, no qual protagonizam o total cancelamento dos shows e espetáculos e a imposição do distanciamento social. Enquanto boa parte dos mais de 130 mil profissionais da cadeia produtiva da cultura gaúcha, conforme dados do Departamento de Economia e Estatística (DEE), viu sua renda diminuída ou até mesmo anulada, o meio precisou se reinventar e encontrar alternativas para que o mercado não esfriasse completamente, fazendo do vínculo com fãs e seguidores a garantia de sequência do trabalho.
Assim, as lives e transmissões em redes sociais se tornaram alternativa para muitos artistas. A comunicação com o público, já importante para músicos e atores, se tornou imprescindível para a manutenção das carreiras e, ainda, alternativa financeira, no caso das transmissões patrocinadas e do couver artístico virtual.

            Com cunho beneficente, as chamadas lives solidárias, que buscam arrecadar fundos para auxiliar colegas de profissão e instituições de caridade que viram suas doações reduzidas por causa da pandemia, são outra estratégia adotada. A verdade é que quanto mais popular o artista, mais amplo o alcance de suas publicações e maior o resultado financeiro de suas iniciativas, independente da finalidade.

          Adepto do couver artístico virtual, o humorista Jair Kobe, conhecido como Guri de Uruguaiana, é um dos artistas gaúchos que tem utilizado as redes sociais como meio de contato com seu público. Durante suas lives, os fãs podem realizar doações de qualquer valor, a partir de um QR Code disponível na tela. De acordo com o humorista, a Live Show do Guri, nome do espetáculo digital, é transmitida por todas as plataformas do personagem — YouTube, Facebook, Instagram e Twitter. “Buscamos oferecer um conteúdo bem produzido, atrativo ao público que já nos segue e participa dos nossos shows”, afirma.

          Outra alternativa nascida dos tempos de pandemia são os festivais e concursos virtuais. Buscando manter vivas as tradições e costumes regionais, especialmente as mais praticadas nos Centros de Tradições Gaúchas, tradicionalistas promovem nas plataformas digitais concursos de declamação, dança, contação de causos e até mesmo chula. No caso destes concursos, os participantes postam vídeos com suas performances e são avaliados por comissões técnicas e populares.

         Além dos artistas, instituições como o Movimento Tradicionalista Gaúcho e entidades tradicionalistas em diversas partes do Rio Grande do Sul também têm promovido ações sociais que vão de arrecadação de alimentos não perecíveis e doação de cestas básicas à distribuição de refeições a pessoas em situação de vulnerabilidade.
Artistas se uniram em uma confraria do bem que arrecada fundos para os colegas de profissão.
Elton Saldanha e grupo Alma Gaudéria participam da iniciativa — Foto: Rogério Bastos
Tradicionalistas de mãos dadas pela solidariedade

           Há quem ache que os grupos de WhatsApp são apenas para compartilhar banners de bom dia, saber notícias dos amigos e compartilhar memes, mas foi a partir de um destes grupos que artistas gaúchos se articularam para a realização de ações de auxílio aos colegas de profissão. Assim nasceu o coletivo Confraria da Música. O grupo arrecada dinheiro a partir de lives e leilões e os converte em cestas básicas que são doadas, especialmente, a músicos menos famosos e equipes técnicas, ou seja, a parcela mais prejudicada do setor.

            Quando os primeiros protocolos de segurança para a prevenção da Covid-19 foram lançados e os eventos cancelados, aqueles que vivem de bailes e espetáculos viram, subitamente, sua fonte de sobrevivência secar, ainda que temporariamente. No entanto, as despesas mensais e a necessidade de alimentar a família assombraram estes pequenos artistas e profissionais técnicos do segmento. Preocupados com os colegas, alguns músicos buscaram no Governo do Estado alternativas de apoio ao setor.

            “Quando chegamos para conversar com o governador Eduardo Leite, lá no início da pandemia, apresentamos a realidade do nosso segmento. Temos músicos consolidados que podem viver por um tempo sem faturamento, mas a maioria trabalha nos finais de semana para sobreviver nos outros dias. Estes, dependem da arte para viver”, conta Fernando Augusto Espíndola, proprietário do grupo Alma Gaudéria e um dos principais articuladores da Confraria.
Fernando Augusto Espíndola - Grupo Alma Gauderia

            De acordo com Espíndola, enquanto o grupo de representantes do setor, composto por ele e pelos músicos César Oliveira e João Luiz Côrrea, tentava convencer o poder público da situação dramática de alguns colegas, lhes foi apresentado um cenário ainda mais desolador. “Enquanto buscávamos algum tipo de linha de crédito ou financiamento para os músicos e seus profissionais, nos respondiam de pronto que seria impossível, porque milhares de outros profissionais informais, até mais organizados do que os músicos, também precisariam de alternativas e não havia, segundo os técnicos, como justificar que apenas um setor fosse beneficiado”, relata o músico. Ele conta que o grupo deixou o encontro desolado, mas convencido de que precisava fazer alguma coisa.

           “Foi aí que o nosso grupo de WhatsApp virou alternativa”, conta, empolgado, o produtor cultural. O grupo havia sido montado em 2018 por alguns artistas de Caxias do Sul e reunia diversos nomes do cenário musical gaúcho. Espíndola conta que o primeiro passo para a articulação era saber o número aproximado de profissionais do setor. Como a Confraria da Música era o grupo que agregava o maior número de artistas regionais e pouco conhecidos, foi a partir dele que o trabalho começou. “Pedimos aos integrantes da Confraria da Música que adicionassem outros músicos e, em pouco tempo já eram sete grupos da Confraria só no Rio Grande do Sul”, pontua. O músico conta, ainda, que com o desenvolvimento das ações que envolvem lives solidárias e leilões beneficentes, o grupo ganhou visibilidade e hoje tem ramificações também em outros estados, como Paraná e Santa Catarina.

           Com nomes famosos entre os fãs da arte regional, como os músicos César Oliveira, João Luiz Corrêa, Elton Saldanha, Borghetinho e Luiza Barbosa, entre outros, emprestando a imagem ao projeto, a Confraria começou o trabalho de arrecadação de recursos. “A primeira doação de 50 cestas básicas veio de um gaúcho que mora nos Estados Unidos. Depois, arrecadamos itens entre os artistas regionais e promovemos um leilão virtual. Arrecadamos mais de 100 mil reais na largada”, ressalta o artista.

           A partir da arrecadação, foi criada uma central de cadastros, administrada pela cantora e produtora cultural Cristina Sorrentino. Nela, os músicos e profissionais de eventos que precisam de algum suporte e de alimentos encontram o retorno às suas demandas. “A Confraria tomou uma proporção muito além do que esperávamos, talvez, um dia, ela se torne uma instituição formal que poderá auxiliar com cursos de profissionalização e outras ações em prol do setor, mas no momento, a missão principal é fazer com que todos passemos pela pandemia e suas restrições sem desistirmos da carreira que escolhemos”, conclui Espíndola.

          Até meados de junho, a Confraria já havia cadastrado mais de mil pessoas e doado 1116 cestas básicas. Conforme Sorrentino, a Confraria firmou parceria com supermercados de 50 municípios gaúchos, nos quais os beneficiados podem retirar as cestas básicas a que têm direito.


Mais um leilão beneficente

          Para o cantor Elton Saldanha, o período de reclusão imposto pela pandemia, além de trazer uma reflexão, é uma experiência de adaptação. “Cada pessoa, sobretudo os artistas, têm que se posicionar de uma forma não só contemplativa, mas também produtiva, afinal, ficar o dia todo em casa pode ser muito proveitoso se soubermos aproveitar bem o tempo”. O artista defende que iniciativas coletivas e individuais são fundamentais para a sociedade neste momento. “Seja através de um contato pela internet com alguém distante, ou de uma doação de alimentos, todos podemos fazer a nossa parte”, afirma.

Elton Saldanha
         Saldanha acredita que mesmo aqueles que andam com “os pilas curtos” podem contribuir intelectualmente, com ideias e composições, ou engajando-se nos diversos projetos digitais que estão nas redes. Ele conta que dentro dessa proposta, participou no domingo, 14 de junho, da segunda edição da Live Leilão, promovida pela Confraria da Música. “Faço parte desse movimento desde o início e, inclusive, doei alguns itens pessoais para serem leiloados. Só juntos sairemos dessa situação difícil”, contou. A transmissão ocorreu pelos canais Lance Rural e Giovani Grizotti Repórter Farroupilha, diretamente de Bento Gonçalves, município apoiador da iniciativa.

            Além de Saldanha, o espetáculo com mais de cinco horas de duração contou com as apresentações de César Oliveira e Rogério Melo, Cristina Sorrentino, Guri de Uruguaiana, Luiza Barbosa, Igor e Matheus, Cristiano Quevedo e João Luiz Corrêa, Banda Real Envido e grupo de danças Rastos do Tempo. Na oportunidade, foram arrecadados 65 mil reais entre doações e itens leiloados. Com o valor, serão adquiridas mais 650 cestas para distribuição entre os artistas cadastrados.

A cultura também busca alternativas

             No início da pandemia, o primeiro corte — e talvez mais sofrido para os gaúchos — foi no chimarrão. Mudar velhos costumes e deixar de compartilhar um hábito tão particular foi difícil, especialmente, porque as autoridades sanitárias indicavam que cada um bebesse a infusão milenar em sua própria cuia. O símbolo de respeito e união entre os gaúchos estaria perdido, então? Em pouco tempo surgiram alternativas e uma grande roda virtual, maior até do que as tradicionais, brotou da adversidade.

             Acostumada a participar de eventos Brasil afora, a Escola do Chimarrão, entidade cultural e sem fins lucrativos, viu, do dia para a noite, toda a sua agenda de eventos cancelada. Mais do que isso, viu sua arrecadação mensal ir de um faturamento médio de 50 mil por mês para zero. Entretanto, as despesas permaneceram. “Não temos funcionários, somos todos voluntários da cultura, no entanto, precisamos sobreviver como todo mundo. Temos contas de água e luz pra pagar no fim do mês e essa pandemia nos pegou desprevenidos”, conta Pedro Schwengber, diretor executivo do instituto. Com uma equipe fixa de seis pessoas e, pelo menos, mais 20 colaboradores pontuais, contratados para os eventos, a Escola do Chimarrão precisou se reinventar diante do cenário de pandemia.

             “Nosso trabalho sempre foi presencial, sempre dependeu do contato com as pessoas, mas diante dessa mudança repentina, buscamos alternativas. Apesar de explorarmos pouco as redes sociais, temos um número considerável de seguidores em nossos perfis e ali encontramos guarida para as nossas iniciativas”, pontua o administrador. Com apoio e patrocínio de empresas parceiras, que querem sua marca vinculada ao chimarrão, os integrantes da Escola realizam, todas as sextas-feiras, uma live com a participação de artistas locais e oficinas sobre o mate. São dicas de preparo, explicações técnicas sobre os avios, lançamentos de produtos específicos, gastronomia com erva-mate e boa música regional.

          Apesar não manter vínculos com o Movimento Tradicionalista Gaúcho, a Escola do Chimarrão se apropria da identidade regional em suas apresentações, com músicos participantes e apresentadores pilchados. “Entendemos que o chimarrão tem um apelo e, no momento que perdemos boa parte dos nossos referenciais por causa da pandemia, buscamos referendar essa ligação, ainda que empírica, com o tradicionalismo a partir da imagem que construímos em mais de 20 anos de trabalho”, destaca Schwengber.
Pedro Schwengber (direita) da Escola do Chimarrão
          O Instituto Escola do Chimarrão é o principal responsável pela divulgação da cadeia produtiva da erva-mate e suas potencialidades. O trabalho, realizado em parceria com órgãos como o Ibramate e o Fundomate, objetiva o fortalecimento do segmento, oportunizando renda para os produtores e ampliação do mercado a partir de alternativas de consumo para a matéria prima. Com um alcance médio além do esperado — cada live tem milhares de visualizações e centenas de comentários e compartilhamentos — o sucesso da iniciativa está relacionado com o conteúdo apresentado. “A cada dia, descobrimos que a erva-mate está muito além do chimarrão. Ela serve de insumo para cosméticos, culinária e medicamentos. Nosso papel é contar ao mundo sobre isso e as redes sociais se tornaram, durante a pandemia, o veículo para alcançarmos esses objetivos. É bem verdade que eu ainda estou aprendendo a dirigir”, brinca, entre risos, o diretor executivo.

Fortalecendo vínculos a distância

           A psicóloga Fabiane Marques conhece de perto a realidade enfrentada por quem depende da arte para viver. O irmão dela, Thiago Marques, é músico e operador de áudio e, com o cancelamento dos eventos, perdeu sua principal fonte de renda mensal. Ela analisa esse novo cenário, em que músicos e outros artistas encontraram nas lives e transmissões pela internet um novo tipo de vínculo que os mantém conectados aos seus fãs.

           Para Marques, o isolamento pode causar impactos à autoestima, levando à ansiedade, desânimo, insegurança e, consequentemente, a pensamentos negativos e outras posturas que afastam ainda mais familiares e amigos. Daí a necessidade de reinvenção que esse momento requer. “Realmente, estamos vivendo momentos difíceis, e não está sendo fácil ficar isolado de tudo que a gente gosta”, pontua a psicóloga. Motivados pelo distanciamento social, muitas pessoas decidem assistir conteúdos para experimentar alguma forma de reunião seja com amigos ou familiares, o que vem ajudar a reduzir a ansiedade, a monotonia e a sensação de inutilidade. “Buscamos por conexão emocional e afetiva nesse momento. Com a pandemia, o mundo que vivíamos hiperconectado e apressado, parou!”, destaca.

          A profissional reforça a importância de seguir as orientações de isolamento social e restrições recomendadas pela Organização Mundial de Saúde e, nesse sentido, acredita que a tecnologia vem favorecendo a aproximação virtual das pessoas através, única forma possível de interação neste momento.
No caso dos artistas, que viram suas agendas lotadas sendo preenchidas por um longo período de isolamento social e baixa perspectiva em retornar aos palcos, o uso das mídias sociais se tornou a principal opção para evitar o ostracismo. De acordo com Marques, esse novo movimento proporciona uma certa proximidade do músico com o seu publico, minimizando, assim, o sofrimento de ambas as partes. “A música nos remete momentos de alegria, diversão, confraternização e torna a nossa vida mais leve e prazerosa. Assistir uma live do seu artista favorito, e compartilhar com os amigos e familiares, nos passa uma sensação de pertencimento, onde a resiliência faz a diferença”, pondera.

            “A arte cumpre importante função social e, através dela, muitos artistas estão se reinventando e tornando-se referência para milhares de pessoas, contribuindo para a autoestima em ambos”, ressalta Marques. Em tempos de pandemia, as lives também exercem função solidária, e permitem a mobilização de diversas camadas da sociedade em auxílio aos mais necessitados. Por permitirem interação entre os espectadores e o artista, a live é um espaço aberto para todos, no qual público e artista se reconectam trazendo conforto, afeto e esperança. “Esse momento também vai passar e nos ajudará a rever a sociedade como um todo”, acredita a especialista.

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