sexta-feira, 1 de outubro de 2010

A Tradição no Plano da Cultura Gaúcha


Para se entender o sentido e o alcance do tradicionalismo é necessário examinar o seu substrato, o conteúdo da tradição, sua origem e consistência. Impõe-se preliminarmente considerar a categoria antropológica cultura, parte integrante e indispensável de qualquer sociedade. É preciso também atentar para a autonomia do Rio Grande como sociedade diversa da brasileira, ainda que a ela fortemente integrada e federada por laços conscientes de opção histórica.

Impõe-se fazer aqui uma digressão teórica. Entre os seres humanos, a principal unidade na luta pela vida não é o indivíduo, mas o grupo, a sociedade. Esta realidade, que varia e assume diferentes estruturas no tempo e no espaço, possui alguns elementos constantes, cujo exame permite a compreensão de seu funcionamento.

Sendo assim, para se compreender uma sociedade, é necessário decompô-la em seus elementos, em suas partes analiticamente discerníeis e nela integradas logicamente. Identificar esses elementos é como identificar os sub-sistemas de um sistema geral. Encontram-se então, no mínimo, três contextos que se interinfluenciam simultaneamente, se interpenetram e estabelecem relações de interdependência e complementaridade. São eles:

1º - O plano da personalidade ou psíquico, que corresponde à maneira de ser dos indivíduos que compõem a sociedade (suas idéias, suas preferências, suas reações emocionais condicionadas, seus papéis, suas ações);

2º - O plano social propriamente dito, que corresponde às instituições existentes na sociedade (familiares, econômicas, morais, políticas, etc.);

3º - O plano cultural, que diz respeito aos valores determinantes dos hábitos, dos costumes, à mentalidade, à “soma de forças espirituais, de saber e de poder humano, de atividades mentais, que se superpõem (e por vezes se opõem) ao jogo dos instintos e das forças naturais” (Birket-Smith).

Os três planos mencionados não estão em pé de igualdade, mas interagem numa interdependência hierarquizada, em função do nível de informação e de energia de cada um deles. Tanto mais importante é o contexto quanto mais rico for em informação, e tanto mais baixo quanto mais rico for em energia. O posto de maior hierarquia cabe ao plano cultural integrado exclusivamente de elementos simbólicos (idéias, crenças, valores) que controlam e conduzem o comportamento dos indivíduos que compõem a sociedade. O de menor hierarquia está no plano da personalidade que inclui a cultura assimilada (internalizada) por cada indivíduo e constitui a motivação, o impulso fundamental do comportamento das pessoas.

Aí está a estrutura da sociedade. Os componentes estruturais se revelam nos três planos: o dos valores (cultura), o das normas praticadas (instituições) e o dos papéis (a personalidade, que abrange a adaptação dos indivíduos ao grupo). Qualquer transformação na estrutura depende previamente de mudanças nos valores da sociedade.

Penso que é neste patamar que deve ser situado o conteúdo da tradição gaúcha. Ela é uma criação coletiva. Não foi inventada por ninguém, no sentido de ter sido criada por alguém, como iniciativa individual. A menos que dermos ao verbo inventar o sentido etimológico, do latim invenire, que quer dizer encontrar, achar, identificar. Quando no século passado foram fundadas as primeiras entidades tradicionalistas, os fundadores nada inventaram, mas apenas identificaram os valores da tradição e procuraram organizá-la como um movimento. O tradicionalismo é, pois, um movimento que se caracteriza por identificar os valores da tradição inseridos no plano da cultura da sociedade Rio-grandense, com o intuito de preservá-los, difundi-los, organizá-los. Sua força extraordinária e a pronta resposta que obtiveram seus incentivadores decorrem da própria hierarquia do plano cultural em que se encontra, rico que é em informação e em valores, aptos a despertar ampla adesão no plano institucional e entusiástica energia no plano do comportamento individual.

Quando em 1857 se fundou no Rio de Janeiro a Sociedade Sul-Rio-grandense, obteve dos gaúchos aquerenciados na Corte pronta adesão, que ainda hoje tem continuidade, no especial brilhantismo no CTG “Desgarrados dos Pago”. Semelhante resposta obteve o Major Cezimbra Jacques, quando em 1898 fundou em Porto Alegre o “Grêmio Gaúcho”, igualmente a “União Gaúcha”, fundada em Pelotas em 1899, com a participação de João Simões Lopes Neto, bem como o “Grêmio Gaúcho” de Santa Maria, surgido também da iniciativa de Cezimbra em 1901.

Seguiu-se um período de pausa, que pode ser interpretado como um compasso de espera diante das grandes transformações por que passou a sociedade na primeira metade do século XX. Valores permanentes, contudo, como os da cultura gaúcha, não podiam continuar por mais tempo em estado social de latência. A inteligente agitação cultural provocada em 1947, desde o Colégio Estadual Júlio de Castilhos, pelos jovens João Carlos D’Ávila Paixão Côrtes, Luiz Carlos Barbosa Lessa e pelo poeta Glaucus Saraiva, funcionou como um sopro impetuoso que acendeu o braseiro dos antigos valores. Em 1948 é fundado o “35” Centro de Tradições Gaúchas, modelo de muitos outros que a seguir surgiriam. Cresce então o Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), que muito antes de ser instituído por lei, já estava institucionalizado na sociedade Rio-grandense. Isto por que os valores são realidades impregnadas de tropismo, possuem atrativos irresistíveis e impulsionadores da ação. Há neles um sentido teleológico, finalístico, ou, como diria o saudoso professor Armando Câmara, eles são o próprio “ser visionado em ordem a sua finalidade”.

Em 1954, foi aprovada a tese de Barbosa Lessa “O Sentido e o Valor do Tradicionalismo Gaúcho”. Em 1955 Carlos Galvão Krebs apresenta a sua tese “A Função Aculturadora dos Centros de Tradições Gaúchas”. Em 1961 Glaucus Saraiva contribui com a “Carta de Princípios do Movimento Tradicionalista do Rio Grande do Sul”. Em 1961 Antônio Augusto Fagundes acrescenta “A Função Social do MTG”. São todos documentos de grandes respeitabilidade, que dão consistência e unidade ao MTG, apontando-lhe os aspectos simbólicos, materiais e imateriais, que justificam a ideologia do movimento.

Se os valores da tradição situam-se no plano da cultura, convém lembrar que é a cultura que distingue e identifica os povos. Ao contrário das sociedades, as culturas são únicas, são singulares. O comportamento social é sempre culturalmente determinado. A sociedade gaúcha tem se distinguido freqüentemente da sociedade nacional, exatamente por suas características culturais. Embora distinta em relação às demais regiões do Brasil, ela se vincula e integra à comunhão nacional porque o patriotismo consciente tem sido um de seus valores máximos. A presença dinâmica de gaúchos em todos os Estados da Federação, a forma como se entrosam às comunidades regionais e a maneira como são acolhidos, constituem a prova de que as diferenças existentes entre o Rio Grande e o Brasil, longe de desunir é motivo de enriquecimento e união.

Fugindo ao etnocentrismo, deve-se destacar que não estamos dizendo que somos os melhores, mas somos indubitavelmente diferentes. A seguir destaco alguns valores básicos da tradição gaúcha, que embora não sejam exclusividade nossa, têm a sociedade Rio-grandense até devido a nossas idiossincrasias históricas, intensidade e características próprias. Eles fazem parte da maneira gaúcha de ser brasileiro.

- o espírito associativo (práticas de cooperação de solidariedade e apreço pela comunidade que têm suas origens na necessidade de união para a defesa nas guerras de fronteira e na necessidade de sobrevivência dos imigrantes);

- o nativismo (o amor ao solo natal, que não foi dado gratuitamente: diferente de outros brasileiros, sabe o gaúcho que não foi um donatário, mas um conquistador - “esta terra tem dono...”);

- o respeito à palavra dada (como se observou no primeiro capítulo, só a palavra de honra do Duque de Caxias conseguiu fazer os farrapos deporem as armas);

- a defesa da honra (apenas como exemplo, lembre-se que o maior desastre moral dentre as hostes farroupilhas decorreu de ofensas à honra e culminou com o lamentável duelo entre Bento Gonçalves e Onofre Pires);

- a coragem (o próprio Rio Grande não teria surgido se não fosse a coragem dos pioneiros, o desassombro dos imigrantes);

- o cavalheirismo (o gaúcho sempre se distinguiu pela nobreza das ações, pela prática de altos feitos na consideração dos seus semelhantes);

- a conduta ética (basta que se observem os grandes escândalos da vida política nacional e se constate que eles não costumam medrar no Rio Grande);

- o amor à liberdade (as idéias liberais nem eram conhecidas no Brasil, quando aqui se fez uma revolução em nome da liberdade, igualdade e humanidade);

- o sentimento de igualdade ( a história da escravatura no Rio Grande foi diferente, a participação dos negros nas tropas farroupilhas foi emblemática, não se observa no Rio Grande a acentuada hierarquização da sociedade comum na maior parte dos outros Estados federados);

- a politização (desde o berço obrigou-se o gaúcho às lides políticas, o estandieiro era chefe político e militar, o peão soldado e cidadão);

- o senso de modernidade (mais pioneiro do que bandeirante, o gaúcho madrugou em relação ao Brasil no liberalismo, na criação de um partido político moderno, no exercício da ditadura positivista, etc.).

Uma maneira de ser, uma forma de convivência indubitavelmente distinta. O gaúcho tem uma personalidade básica determinada por uma formação histórica diferente, por uma sociedade que teve uma formação diversa da sociedade nacional, por uma cultura singular e com características próprias.
(Extraido do Livro Tradicionalismo: Responsabilidade social e reflexões de Jarbas Lima)

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