terça-feira, 23 de novembro de 2021

Podemos subestimar o Folclore? - por Rúbia Lossio


     Será que tudo que não funciona de um jeito novo ou ainda encontra-se na era do tecnossauro, como o gravador de fita cassete, máquina de escrever, disquete, máquina fotográfica, telefone analógico entre outros aparelhos em desusos, são Folclore? Pessoas que têm costumes antigos são uma lenda do Folclore? E, quem foi que disse que Folclore é atraso, é antigo e sem uso? Será que o neologismo da palavra Folclore por ser inglesa traz uma carga de preconceito e ojeriza? Engraçado é que muitos nomes aqui no Brasil são americanizados ou de origem inglesa para apontar alguns exemplos temos nomes de prédios, temos também usos de palavras no dia a dia, Office Cariri, The Garden, podcast, smart tv, Tower center, Holiday e por aí vai... a lista é grande. Não sei porque a implicância, aversão e preconceito ao termo Folclore? Mas, será que realmente sabemos o intenso significado do Folclore? 

    Desde menina sempre tive curiosidade em compreender os costumes e a vida do povo. Tive a oportunidade de conhecer uma casa de farinha e também conviver com as diversas manifestações do nordestino. Meus avós maternos imbuídos de vivências e saberes atribuem singularidades para compor atividades do dia e da noite. Por sua vez, minha avó ensinava como cozinhar cuscuz no pano, rezar o terço sempre às seis horas da noite ao som do rádio de válvulas, fazer crochê, colocar um fiapo vermelho na testa do bebê para amenizar o soluço, costurar, entre outras artimanhas que a comunidade doméstica revela. Meu avô gostava de caçar, ia para mata pegar tatu, frutas entre outras coisas. Vestia-se como um soldado, usava um chapéu e com sua espingarda parecia um herói dos filmes de Indiana Jones. Sabia plantar, reciclar o lixo, conservar a natureza, fazia a ponte entre o céu e a terra e o cuidado com a natureza e seus mistérios. Tudo isso foi dito para compreendermos que o folclore perpassa pelos ritos que são fragmentos do eterno e fazem do homem e seus símbolos uma fonte de tradição e tradução do folclore pela essência da vertente antropológica.

    "As análises do caso brasileiro integram esse novo panorama que atravessa desde de então a antropologia mundial. Em muitos outros países, como nos casos de Portugal e França, examinados por João Leal (2016,2018) e Nicole Belmont (1974,1986), respectivamente, os estudos de folclore são inegavelmente uma das ricas vertentes formadoras do pensamento antropológico. Abrem-se com isso possibilidades de desdobramentos comparativos ainda pouco explorados por nós. O reconhecimento da heterogeneidade disciplinar e o interesse pelas diferentes trajetórias nacionais de configuração da antropologia trazem outro benefício aos efeitos para pesquisas etnográficas voltadas para o universo das culturas populares. Como qualquer processo sociocultural, aqueles que abarcam as expressões consagradas como folclóricas são dinâmicos, sempre atualizados e resinificados no curso da ação social."1

Há de se considerar que o debate entre o folclore ou cultura popular estará sempre no topo dos acadêmicos porque tudo que é complexo, amplo e forte revela proporções inexploradas e ativa a discussão entre o que consideramos menor ou maior na comunidade acadêmica.

Ainda sob a ótica de Viveiros de Castro em seu texto - Por uma antropologia dos estudos de folclore - "A interação dessas duas dimensões do diálogo antropológico com os estudos do folclore - aquela que os integra à tradição viva das ciências humanas e sociais de modo geral é aquela que abre experiência etnográfica para a criatividade e maleabilidade das expressões culturais - configura o que tenho chamado de antropologia dos estudos do Folclore."1

Nessa mesma direção, o atual Presidente da Comissão Mineira de Folclore, o professor Romeu Sabará afirma que o termo folclore é carregado de polissemia, ambiguidades e preconceitos. " Essa problemática pode ser examinada a partir de três formas de manifestação de preconceitos acadêmico-científicos contra o folclore: Uma delas consiste na rejeição acadêmico-científica ao termo "folclore" e a busca de substantivos como "Folklife", "folclore nascente", "cultura de folk" e "cultura popular" e outros. Outra delas consiste na rejeição ao Folclore como disciplina científica por parte do meio acadêmico. Uma última consiste na emissão de um discurso científico preconceituoso contra o folclore, seus estudos e seus estudiosos por parte de alguns cientistas sociais."2

Romeu Sabará afirma que:

"Contudo o eixo temático - Comunidade doméstica será objeto de um tópico especial - devido à importância para a discussão sobre o que seja folclore ou cultura popular como base econômico social que é do que se convencionou denominar como folclore ou cultura popular. Afinal a unidade social básica onde se nasce, cresce e morre. É onde se ensina a língua materna e se cultiva formas elementares de viver, sem que necessário seja ir à igreja, à escola, à empresa ou recorrer ao estado."2

    Precisamos ressaltar que na comunidade doméstica, objeto de estudo antropológico que o folclore nasce e se transforma. Com isso essas disputas sempre foram o motivo de aceleração para os estudos do folclore, como dizia Florestan Fernandes que os folcloristas eram intitulados de "anotadores arbitrários".2

    Bem, os "anotadores arbitrários", não param de esculpir suas pesquisas pelas comunidades domésticas. E também não podemos esquecer da Carta do Folclore brasileiro que este ano completa 70 anos de existência registrada no Congresso Brasileiro de Folclore por Renato Almeida. Para lembrarmos:

    O Congresso Brasileiro de Folclore reconhece o estudo do folclore como integrante das ciências antropológicas e culturais, condena o preconceito de só considerar folclórico o fato espiritual e aconselha o estudo da vida popular em toda sua plenitude, quer no aspecto material, quer no aspecto espiritual.

(Rio de Janeiro, 31 de agosto de 1951 - Renato Almeida, Presidente - Cecília Meireles, Secretária- Geral. Publicado no 1° volume dos Anais do Congresso Brasileiro de Folclore - 22 a 31.8.51)

    É cabível de registro evidenciar que não podemos esquecer das ciências antropológicas o que não podemos é confundir, cultura com capital. Como folcloristas devemos salvaguardar o saber do povo pela comunidade doméstica com registros e pesquisas. A Dra. Lynne S. McNeill é professora assistente de folclore no Departamento de Inglês da Universidade Estadual de Utah dos Estados Unidos diz que: "Este é um fenômeno interessante que surge com frequência nos estudos folclóricos. Como folclorista profissional, sei que os vários termos da minha disciplina têm definições específicas, que não dependem da opinião individual, mas sim de uso objetivo no campo de estudo. Por exemplo, "folclore", segundo os folcloristas, é a “cultura tradicional informal” de um grupo de pessoas, seja uma família, uma comunidade universitária, um grupo religioso ou uma nação (ou qualquer outro grupo, grande ou pequeno). Esta é uma definição muito mais ampla do que as pessoas supõem instintivamente para “folclore”; a maioria das pessoas tem um senso quase intuitivo e atmosférico do folclore como antigo, rural, místico ou falso. Claro, muitas coisas que são antigas, rurais, místicas ou falsas podem na verdade ser folclore, mas não são folclore porque eles possuem essas qualidades. São folclore porque são exemplos de cultura tradicional informal que também é velha, rural, mística ou falsa."

    Assim, como diz Ailton Krenak "Quando nós falamos que o nosso rio é sagrado, as pessoas dizem: 'Isso é algum folclore deles' ; quando dizemos que a montanha está mostrando que vai chover e que nesse dia vai ser um dia próspero, um dia bom, eles dizem: 'Não uma montanha não fala nada'. Quando despersonalizamos o rio e a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista. Do nosso divórcio das integrações se interações com a nossa mãe, a Terra, resulta que ela está nos deixando órfãos, não só aos que em diferente graduação são chamados de índios, indígenas ou povos indígenas, mas a todos."3 Então, não podemos subestimar o folclore porque jamais perderá a sua essência, que é o encontro, que são as relações sociais. Por isso, como afirma a escritora Paulina Chiziane, "bonito mesmo é contar história, é a linguagem oral, falar de coração para coração, trazer uma voz coletiva" Na verdade, queremos ouvir melhor para ecoar uma voz coletiva a partir dos saberes e vivências do povo. Não só ouvir, como sentir o povo. Sou como Cecília Meireles, gosto mesmo é de gente, de seres humanos.

    “Tenho um vício terrível” — me confessa Cecília Meireles, com ar de quem acumulou setenta pecados capitais. “Meu vício é gostar de gente. Você acha que isso tem cura? Tenho tal amor pela criatura humana, em profundidade, que deve ser doença.” “Em pequena (eu era uma menina secreta, quieta, olhando muito as coisas, sonhando) tive tremenda emoção quando descobri as cores em estado de pureza, sentada num tapete persa. Caminhava por dentro das cores e inventava o meu mundo. Depois, ao olhar o chão, a madeira, analisava os veios e via florestas e lendas. Do mesmo jeito que via cores e florestas, depois olhei gente. Há quem pense que meu isolamento, meu modo de estar só (quem sabe se é porque descendo de gente da Ilha de São Miguel em que até se namora de uma ilha pra outra?), é distância quando, na realidade, é a minha maneira de me deslumbrar com as pessoas, analisar seus veios, suas florestas.” (Fragmento da última entrevista de Cecília Meireles, concedida em maio de 1964 ao jornalista Pedro Bloch).

Por isso, o folclore ou cultura popular é subversivo e dinâmico. É a essência do povo em ebulição!

1 Cavalcanti, M. L. e Corrâ, J. (Orgs), Enlaces: Estudos do Folclore e Culturas Populares. Rio de Janeiro: IPHAN, 2018.

2 Sabará, R. Antropologia e Folclore Ambiguidades e Preconceitos. Belo Horizonte, MG. Edição do Autor, 2021.

3 Krenak, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

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