terça-feira, 22 de setembro de 2020

Concurso Literário do Piquete Chama Nativa - 1º Lugar

 

CENÁRIO DE CAMPO  -  Alberto Salles

Sangue de raça andarilha
criou sonhos por aqui,
fibra aguerrida em si
se perdeu pela coxilha,
vejo o resto de uma encilha
laço, freio e cabeçada,
capa negra extraviada
uma cambona também,
muito mais eu sei que tem
na morada abandonada.

Vejo a porta da saudade
abrindo dentro de mim,
vai gritando as dobradiças
nos pinos deram-se fim,
apodreceu as cancelas
e, não se tem mais tramelas
pois, saudade é mesmo assim.

Recanto vida formosa
telhado não se vê mais,
varanda abrigava os "ais"
prum mate de boa prosa,
e a lembrança silenciosa
da vida nessa morada,
sem parapeito na entrada
são imagens que nos vem,
muito mais eu sei que tem
na morada abandonada.

Fogão tosco enferrujado
carcomido pelos anos,
aquentou tantos fulanos
de sonho aquerênciado,
um cambão todo quebrado
na mangueira estourada,
mesa antes abençoada
do tempo a fez de refém,
muito mais eu sei que tem
na morada abandonada.

Se fez cenário de campo
por motivo de partida,
mato cobrindo a carreta
podridão sua ferida,
canzil e canga rachada
da porteira derrubada
pela solidão vencida.

Escada podre rangendo
sem dar passo na subida,
sótão de tábua ferida
vazando luz pro remendo,
cortina segue tremendo
de parede amarrotada,
a porta torta e judiada
que, com o tempo convém,
muito mais eu sei que tem
na morada abandonada.

Sussurros faz ritual
para qualquer índio vago,
mostra o retrato no pago
com silêncio ancestral,
abriga o imaterial
para a visão ofuscada
pros que passam de cruzada
ofertando lhe um amém
muito mais eu sei que tem
na morada abandonada.

Calou-se com a distância
com os anos se extraviou,
o apego para com seus
por motivos se acabou...
por falta de bem querer
ou, por morte lhe fez sofrer...
por isso, se desgarrou.

Ali mantém-se nas frestas
escora dos belos sonhos,
além dos lados tristonhos
ecos revivem arestas,
murmúrios franzindo as testas
na quietude memorada,
a sala toda banhada
com os respingos do além,
muito mais eu sei que tem
na morada abandonada.

No retrato sem moldura
sem imagem definida,
onde guarda alma vivida
sobre o chão dessa planura,
se foi luzindo pra altura
só na memória guardada,
fibra da mulher amada
do campeiro homem do bem,
muito mais eu sei que tem
na morada abandonada.

Esse sabedor do tempo...
deixa tristeza e sequela
na imagem dessa tapera,
que antes já foi tão bela
os donos na eternidade
e hoje somente a saudade
tá morando dentro dela

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