segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Reviver - por Henrique Fagundes da Costa

          Na outrora divisão territorial do nosso Estado, as regiões ao Norte estavam atreladas ao complexo missioneiro, com exceção da estreita faixa litorânea, à leste. Nas “entradas” aos então sertões, os bandeirantes, na sua marcha irrefreável ao Sul, descobriram a riqueza bovina nos Campos de Cima da Serra. Não apenas a região, mas as enormes reservas de gado bovino, gado chimarrão ganharam nome devido às icônicas e nativas araucárias, os pinhais. A Vacaria dos Pinhais entrou para os mapas e para a História. Nas suas campinas, os índios guaranis, supervisionados pelos curas missioneiros, vagavam inebriados pelas correrias ao gado alçado. Logo, o sonho de uma sociedade perfeita seria confrontado por poderosos interesses e, changadores que a muito já se entretinham nas correrias da vacaria maior, a do Mar, se aproximariam cada vez mais, desse verdadeiro tesouro. Também o fluxo de conquista português passaria a se intensificar, imprimindo ainda mais pressão, com ações predatórias que levariam a um resultado facilmente previsto: a extinção do gado chimarrão.

           No entanto, esses ataques massivos que, não respondiam a um comando central, mas que se multiplicava em ações isoladas – influenciados em grande parte pelo contrabando – acabaram por gerar um produto inesperado. Uma cultura local. Uma cultura autóctone. Sob a visão histórica, até uma terminologia especial foi criada: A Idade do Couro. Abandonados à própria sorte, sofrendo as inclemências do tempo e enfrentando o rigor das perigosas lides nas vacarias, homens arrancaram o couro do gado selvagem por cerca de duzentos anos. Não nos preocupemos com a contagem do tempo, mas sim com esse subproduto que foi a sedimentação de conhecimentos campeiros que, mais tarde, foram transferidos para as primeiras estâncias. E é a história interessante. Quem chegou até aqui pode, sem dificuldade, imaginar essas cenas e percorrer séculos e séculos enquanto lemos estas poucas palavras. E no transcorrer do tempo, na transformação dos lugares, podemos observar que muitas vezes, mudanças bruscas conseguem alterar ou mesmo substituir culturas há muito estabelecidas.

            Das vacarias, restou apenas o nome. As Missões viraram ruínas. Suas pedras, cor de cobre, são testemunhas de um remoto passado e estão lá, para contar toda essa história. Os índios se misturaram ao povo, que hoje, é um só. As  estâncias, assim como o tempo, sofreram as inclemências da transformação. Mas nem tudo é História. Assim como as pedras das missões, nos, os gaúchos, recebemos um legado silencioso que teima, geração após geração em reviver.
Nos mesmos campos salpicados pelas araucárias e outrora trilhados pelos índios, uma festa, uma festa campeira é o epicentro, onde pessoas dos mais distintos pagos comungam sentimentos, revivem a terra e se nutrem de um espírito em comum. Como é natural nos grandes eventos, uma multitude de acontecimentos simultâneos divide a atenção das milhares de pessoas que são levadas ao Rodeio Crioulo Internacional da Vacaria. São muitos tiros de laços, épicas gineteadas, apresentações de danças típicas e shows dos mais proeminentes cantores da nossa terra. Mas um acontecimento em especial, chamou minha atenção nesse interim de devoção e patriotismo: um concurso infantil de tiro de laço em vaca parada. Num recinto preenchido pelos eufóricos familiares, que dividiam o espaço com o curioso público, os guris, olhos atentos nas aspas imaginárias, reboleavam seus laços de esperança, sonhando, quem sabe um dia, receber o título de campeão da Vacaria. Mas mais que o tiro certeiro, depois de uma armada bem reboleada, essas pequenas mãos laçavam um futuro ainda mais gaúcho.

Henrique Fagundes da Costa
Fevereiro de 2020

Nenhum comentário: